MANOEL RODRIGUES DE MELO
Ao completar 80 anos, a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras homenageou Manoel Rodrigues de Melo, acadêmico fundador da cadeira n° 30 e presidente da Instituição entre 1955 e 1976. Como seu conterrâneo, fui convidado a falar sobre o homenageado na sessão realizada em 02 de agosto de 2016, conduzida pelo Vice-Presidente de então, o saudoso Paulo Macedo. Na época publiquei o texto apresentado a acadêmicos e convidados nesta rede de comunicação. Como sempre faz, o Facebook relembra fatos e lembranças significativas que trazemos e partilhamos com os amigos. Desta vez, após cinco anos daquela homenagem, volto a dizer com imenso prazer a importância que teve Rodrigues de Melo para o Rio Grande do Norte, como intelectual e realizador de obras que ainda hoje marcam nossa história, a História do Rio Grande do Norte.
Segue o texto apresentado, com algumas correções que achei importante fazer para reproduzi-lo.
Gostaria de iniciar agradecendo o convite da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras para homenagear uma pessoa por quem tenho profundo respeito.
Falar sobre Manoel Rodrigues de Melo – ou Badéu, como costumeiramente o chamávamos face à aproximação e amizade duradoura construída entre nossas famílias, é para mim uma honra. Maior ainda pelo convite me chegar através da grande amiga Diva Maria Cunha Pereira de Macedo, titular da Cadeira n° 30 da ANL, da qual ele foi fundador em 1943 (coincidentemente, ano em que nasci), e Presidente desta Instituição por mais de 20 anos.
Peço permissão, neste início de conversa, para fazer a leitura de pequenos trechos de dois livros que publicou. Constituirão fio condutor para abordar o tema que me foi proposto apresentar nesta programação comemorativa dos 80 anos da conceituada e sempre renovada Academia de Letras do Rio Grande do Norte.
No primeiro texto, extraído de VÁRZEA DO AÇU, o autor se dirige, de forma direta, ao “varzeano amigo”, afirmando:
"Eis aqui o teu livro [...].
Que seja obra de valor, bem sei que não o é; mas que tenha posto nele todo o meu coração, ninguém o contestará. Todo ele está cheio do mais profundo amor e do mais exagerado afeto que um homem pode ter à terra do seu nascimento. As cenas e episódios que vão narrados foram os mesmos a que assististe comigo, nos anos invernosos ou nas fases cruas da seca. Os mesmos que encheram de alegria e sofrimento os teus filhos e netos. Os mesmos que ainda hoje oferece o rio caudaloso, em tempo de cheia, garroteando as tuas vazantes, expulsando os teus gados, desalojando os teus filhos e as tuas mulheres para cima dos tabuleiros. Não há, pois, invenção nem fantasia na descrição da tua vida ou da nossa vida.”.
No segundo, do autobiográfico TERRAS DE CAMUNDÁ, ele mescla ficção e realidade, colocando-se como narrador e personagem da trama romanceada. E conta uma viagem feita a cavalo em 1925, na companhia de um tio. Percorrem 30 léguas, de Pendências até Currais Novos, onde ele fora em busca de trabalho e de melhores condição de vida. Aí, descreve poeticamente:
"O Cabugi, aparentemente perto, cachimbava ao longe, majestoso. São Romão desaparecera, Angicos nem se falava, Santa Maria era um nome obscuro; só Felisópolis marchava com eles. Era um nome sagrado, inesquecível, suscitador de recordações, de ódios, mas também de ternura, de amor, de alegria comunicativa, de afetos inextinguíveis. Bastava lembrar, de relance, o semblante da mãe, olhando-o naquela atitude habitual de quem se dava espontaneamente ao sacrifício pelos filhos, para não esquecer de um jato a terra do seu berço. A terra onde viu pela primeira vez a luz do sol, onde ecoou o seu primeiro grito, onde se lavou pela primeira vez na água do seu rio, onde se pôs pela primeira vez em contato com o vento, com o clima, com o espetáculo maravilhoso e empolgante de toda a natureza. Bastaria isso. Felisópolis era assim, uma espécie de fada misteriosa e feiticeira que o acompanhava, tomando parte em sua vida [...].
A viagem poderia parecer, à primeira vista, uma fuga, reforçando a tese dos que não amavam a sua terra. Mas não era. Era, antes, uma experiência para positivar o seu amor. Afastando-se dela compreendeu logo a atração irresistível do torrão natal. O amor crescia na proporção da distância [...]".
Presente nos dois textos, como é possível observar, o amor declarado e incondicional à Várzea do Açu e de forma mais especifica, naquele mundo, ao lugar onde nasceu: Pendências, travestida na narrativa romanceada como Felisópolis, terra de Félix Rodrigues, o filho de portugueses que lá se fixou e estimulou a povoação do lugar. Estudioso da história da região, Manoel o define como fundador da Vila de Pendências, emancipada do município de Macau em 1953.
A presença do Vale é, pois, marcante em sua obra. Dos sete livros que publicou todos falam da região. Em três deles – Várzea do Açu (1940), Patriarcas e Carreiros (1944) e Cavalo de Pau (1953) – de forma mais densa e com visão sociológica e etnográfica observa em profundidade a região e sua gente, ampliando o conhecimento de tipos e costumes do Nordeste brasileiro – a partir da sua aldeia e do mundo que a cerca. Fez ligeira incursão também na poesia e no romance, produzindo Chico Caboclo e outros poemas (1957) e o já citado Terras de Camundá (1972).
Explica em seu primeiro livro o porquê da Várzea como objeto de investigação e em que dimensão a retratou – ou, como afirma Mestre Cascudo, filmou-a “com a mais sensível, delicada e fiel das máquinas: o coração”.
Transcrevo a seguir o entendimento marcante que tinha sobre a região:
“Quando dizemos Várzea do Açu, não queremos nos limitar, exclusivamente, aos terrenos dessa espécie, localizados ao lado esquerdo do rio Açu. Queremos, pelo contrário, incluir todos os terrenos de aluvião existentes à esquerda e à direita do [...] rio, quer sejam do município de Assu, quer sejam do município de Macau. E isto pelos seguintes motivos: [...] os dois grandes municípios do norte do estado têm um destino comum, com relação às cheias que invadem aquelas terras. As suas populações se confundem e se irmanam na alegria, no sofrimento e na morte. Quando o rio desce devorando as vazantes, enchendo aos pulos, transbordando o leito, alagando as várzeas, atinge a população das duas margens; [...] as terras, como as populações das duas margens são mais ou menos dependentes ou favorecidas pelas águas do rio. Fazendeiros, agricultores, pescadores, proprietários de carnaubais, canoeiros, salineiros, todos são direta ou indiretamente beneficiados, quando não prejudicados nos seus interesses. Todos têm, portanto, seus interesses econômicos intimamente ligados ao rio. Além disso, todos são, em relação à qualidade da terra, legítimos varzeanos; [...] e esta é a razão mais forte; toda a região [...] pertencia, na fase colonial, ao grande município de Assu”.
Passados mais de 70 anos da primeira edição do livro, com o barramento do rio pela "Armando Ribeiro Gonçalves", a descoberta e exploração de novas riquezas no solo e subsolo e de outras vantagens – além de desvantagens trazidas também pela modernidade - a Várzea diversificou-se na sua economia e multiplicou-se em mais de uma dezena de municípios. Na composição oficial de microrregiões que constituem hoje o Rio Grande do Norte, o Vale do Açu já não é o mesmo. Dele retiraram Macau, considerada outra microrregião. Mesmo assim, Manoel Rodrigues continua sendo o seu principal cronista e fonte de informações sempre consultada por estudiosos. Se a Várzea possibilitou a Badéu a régua que direcionou o seu trabalho intelectual, com as primeiras influências e a disposição de seguir em frente para observar, aprender e contar; foi em Currais Novos onde vislumbrou o compasso que lhe permitiu iniciar a formação dos círculos que lhe garantiram treinamento e a descoberta da vocação de escritor. Círculos que se multiplicaram na cidade, na região do Seridó e também (e principalmente) em Natal, para onde se transferiu em 1929, ampliando a abrangência de suas atividades: no trabalho, nas escolas que frequentou, em movimentos da Igreja Católica nos quais se engajou e na cidadania que soube exercitar. Foi aluno e professor, congregado mariano, integralista. Seguindo os princípios abonadores da ética. E sempre disposto a acumular saberes.
Foi em Currais Novos onde desenvolveu a primeira experiência de escritor, como aprendiz de jornalismo em O Porvir, jornal criado por ele e Ewerton Dantas Cortez, estimulados por um professor, Gilberto da Cunha Pinheiro, quase como tarefa escolar. Como resultado dessa prática e das experiências que vivenciou naquela cidade, incluiu o Seridó, alguns de seus patriarcas e observações coletadas sobre o uso do carro de boi na região como partes do livro Patriarcas e Carreiros, cuja primeira edição data de 1944. Tive a honra, como Pró-Reitor de Extensão Universitária, durante o reitorado do professor Genibaldo Barros, de apresentar a terceira edição do livro, publicada pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Já residindo em Natal, empenhou-se em novas iniciativas. O acadêmico Hélio Galvão testemunha sobre a sua participação na criação da revista literária BANDO, que circulou em Natal ao longo de dez anos (entre 1949 e 1959), afirmando: “foi ele o pai da ideia, o autor da sugestão de que nasceu Bando, a publicação mais séria que se editou no Rio Grande do Norte”. Consignando sua admiração pelo espírito empreendedor de Badéu, o mesmo Hélio, na apresentação do livro Terras de Camundá, cita outro grande empreendimento que o caracteriza, capaz de ombrear-se em importância com o legado deixado em livros e nas publicações que produziu: a construção da sede desta Academia: “de tijolo em tijolo, dia por dia, [Manoel] ergueu sozinho o edifício da Academia de Letras. O pedreiro pode ter assentado o tijolo e colocado o prumo na parede que ia subindo; mas as mãos que construíram foram as dele: pedia subvenção, escrevia a deputados e senadores, convocava autoridades. Do nada fez tudo. De quantos ali estão só ele [...] levantou o prédio, deu-lhe acabamento e mobiliou as salas. Fez tudo”.
Já Veríssimo de Melo, acadêmico e também parceiro na experiência vitoriosa de BANDO, assim conta em Patronos e Acadêmicos: “embora ninguém na Academia acreditasse na sede própria, ele quase sozinho construiu o edifício, imponente para a época e os fins a que se destinava. [...] Em menos de dez anos, erguia-se o majestoso prédio, que hoje é uma das suas glórias, como o é, igualmente, da Academia”. E acrescenta uma pitada de bom humor: “o mais notável é que ele ergueu este prédio a pé e sem relógio [...], embora seja homem pontualíssimo nos compromissos”.
Reconhecendo a grandeza desse empreendimento, em Assembleia Geral realizada no dia 2 de abril de 1993, seus pares conferiram-lhe o nome de batismo: CASA MANOEL RODRIGUES DE MELO.
O varzeano admirável que esta Casa homenageia neste momento foi incansável em promover sua terra e região. E sempre de forma surpreendente. Bom exemplo disso é referido pela professora Terezinha de Queiroz Aranha, autora de sua Biobliografia em parceria com o professor Cláudio Augusto Pinto Galvão. Nela registra, entre outros, o empenho para publicação em 1945 de uma Poliantéia comemorativa dos 50 anos de construção da Capela de São João Batista de Pendências. Além de editor, Badéu mobilizou vários intelectuais como colaboradores e levou para a então vila, como orador oficial das festividades, o amigo Luís da Câmara Cascudo, patrono desta Academia.
À professora, pesquisadora atenta de toda a produção literária do seu conterrâneo, se deve o resgate de um trabalho inédito, que resultou no seu último livro: Memória do Livro Potiguar, publicado pela Editora da UFRN em 1994.
Há outro livro que denota com veemência a amorosa relação de Manoel Rodrigues de Melo com o jornalismo e a cultura do nosso estado. Retomando e ampliando o exemplo de Luiz Fernandes, autor de A Imprensa Periódica no Rio Grande do Norte, ele se utiliza fundamentalmente do seu acervo pessoal, acumulado ao longo da vida, e produz o Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, publicado pela Fundação José Augusto em 1987. Considerado referência na historiografia potiguar, é um livro indispensável a pesquisadores das ciências humanas, especialmente aqueles dedicados às áreas de história, comunicação social, letras, sociologia. Relacionando mais de 600 verbetes, o autor identifica jornais, revistas e outros meios impressos que circularam no estado de 1909 a 1987. Desfia nome de fundadores, redatores, colaboradores e chega a outros detalhes que poucos dariam importância, como a indicação de pseudônimos com que muitos dos autores assinavam suas matérias, característica muito comum na época em que exercia o jornalismo. A apresentação dos verbetes contendo a identificação de cada periódico é feita por cidade, numa abrangência de 34 municípios. Todos aqueles dados resultaram de seu trabalho minucioso como investigador.
Gostaria de registrar – a título de reconhecimento – que além da publicação do Dicionário da Imprensa do Rio Grande do Norte, a Fundação José Augusto, na administração do jornalista Woden Madruga – acadêmico eleito recentemente por esta Casa – desenvolveu um bom trabalho de organização do acervo de Rodrigues de Melo, visando preservar a sua memória e disponibilizar informações ao público interessado. Com apoio da família, que doou livros e documentos, a Fundação instalou em 2002 o Núcleo Manoel Rodrigues de Melo, vinculado ao Centro de Documentação Cultural da Instituição, hoje Centro de Documentação Eloy de Souza.
Por oportuno, gostaria de sugerir uma ação conjunta de entidades que ele valorizou e a que serviu, para que tenhamos em breve toda a obra do autor varzeano digitalizada. Por que não somar-se a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras – sua CASA – a outras instituições como UFRN e Fundação José Augusto, visando aprofundar aquele trabalho com a digitalização de todo o acervo disponível, colocando-o ao acesso de pesquisadores? Desde já, em nome da Fundação Félix Rodrigues – que atualmente encerra suas atividades na cidade de Pendências após 19 anos de funcionamento, informo a possibilidade de contribuir com a iniciativa que vier a ser tomada, disponibilizando os originais digitalizados de pelo menos 26 números da revista BANDO, abrangendo todo o período de circulação da revista. Da mesma forma, a instituição faz entrega no encerramento deste encontro – à Academia e ao Conselho Estadual de Cultura – do livro O Mundo Varzeano de Manoel Rodrigues de Melo, de Maria da Salete Queiroz da Cunha, com fotografias de João Vital Evangelista Souto, mostrando-o como um dos exemplos do que foi feito para preservação de sua memória.
A um homem assim, cuja vida foi rigorosamente exemplar para a cultura do Rio Grande do Norte, cabe o merecimento da divulgação, para que as novas gerações possam conhecer a sua grandeza, como nitidamente aparece nos testemunhos já citados e em outros que reforçam sua tenacidade e perseverança como leitor e escritor. Como este, apresentado pelo jornalista Valério de Andrade, com o olhar observador de ainda criança, na Tribuna do Norte de 07 de junho de 1994: “no final dos anos 40, o calçamento e o asfalto ainda não tinham chegado à Avenida Afonso Pena e, naquela rua larga e sem canteiros divisórios, havia poça d´água, montes de capim e pequenas pedras. Mais meninos do que carros na rua – nenhum ladrão. As casas não eram engradadas e, como não existia televisão, as pessoas, à tardinha e à noite, levavam as cadeiras para a calçada. Havia, porém, um homem que nunca foi visto sentado à frente de sua casa: Manoel Rodrigues de Melo. Durante dias, semanas, meses, anos, podia-se vê-lo todas as noites, através da janela, debruçado sobre livros e escrevendo".
Reitero, por fim, o meu agradecimento pelo honroso convite para vir homenageá-lo em sua própria CASA. Com orgulho, posso dizer que cresci admirando este intelectual e com ele busquei aprender sobre a nossa terra comum, sobre a cultura potiguar, sobre a vida. Ao lançar em 1989 o livro Geringonça do Nordeste – A Fala Proibida do Povo, tratando da injustiça cometida contra o professor Clementino Câmara, impedido em 1937 de publicar um dicionário de termos regionais por ele recolhidos, o admirável Badéu fez questão de me escrever fazendo generosas referências ao trabalho, arrematando seus comentários com uma observação onde pude ver claramente o rigor que possuía como pesquisador e sua extraordinária humildade. Lembrava em palavras que a mim dirigiu o que aqui reproduzo: “no volume que você me ofereceu estão faltando as páginas 17 e 18. Mande copiar e traga que eu coloco no lugar”. É claro que no dia seguinte estive em sua residência, para sanar a falha cometida pela gráfica, levando-lhe, perfeito, um segundo exemplar.
Encerro confessando um fato que me proporcionou das maiores alegrias no período em que assumi a Reitoria da UFRN, juntamente com o Vice-Reitor João Felipe da Trindade. Foi a de, cumprindo decisão unânime do Conselho Universitário, conceder-lhe o título de Doutor Honoris Causa na última Assembleia que presidi, realizada em 28 de maio de 1995.
A aprovação por unanimidade daquela homenagem, por si só, carrega um imenso significado: o reconhecimento da grandeza e da capacidade realizadora de Manoel Rodrigues de Melo pela sociedade norte-rio-grandense.
Natal, 02/08/2016
Geraldo dos Santos Queiroz.
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